NP_Revista2-20150517

Anacleto estava radiante. Já lhe tinham dito lá na repartição mas ele não acreditava. No dia 13, o das aparições lá de Fátima, já podia escrever com menos letras, que alívio. Agora era lei, já não podiam gozar com ele quando escrevia “coação” e lhe perguntavam onde é que tinha comprado o coador. Só podia ser mesmo bênção dos pastorinhos. Ele tinha-se informado, sabia tudo. Até ao dia 13, havia na escrita portuguesa duas ortografias. Uma para Portugal e outra para o Brasil. Um excesso! Agora, a partir de dia 13, passa haver só duas ortografias. Reparem bem na subtileza: duas e “só duas”. Completamente diferente. As duas antigas tinham muitas palavras diferentes, e além disso eram duas. As novas também têm palavras diferentes (não exactamente as mesmas, porque é preciso variar, a escrita tem de vencer o tédio) e são “só duas”. Ora é com este “só duas” que o português vai finalmente ser aceite lá na ONU, na UE, na CEDEAO e nessas coisas todas importantes. Mesmo na colectividade lá do bairro, onde os comunicados já estavam a ser escritos em mandarim, ia passar a imperar o “só duas”. Que é uma escrita comum, como está bom de ver.

Ele, Anacleto, até já se precavera. Comprara um dossier daqueles de argolas, bem bonito, de capa colorida, para começar a coleccionar os preciosos documentos escritos em “só duas”. Claro que nem toda a gente ia aceitar aquilo, havia muitos conspiradores, sediciosos, sempre prontos a pôr em causa os altos interesses da Pátria. Para isso, ele tinha um remédio: o capitão Windows. Era como o capitão Falcão do filme, o que dava pancada a torto e a direito nos que desafiavam o poder do senhor doutor, mas este era mais hábil e eficaz. Mesmo sem capa, voava; e, mesmo sem ser o velhinho de barbas brancas assessorado por renas a cada Natal, conseguia entrar em todas as casas ao mesmo tempo. Fosse onde fosse, aqui ou noutros continentes. Bem podiam queixar-se de que isto estava a “desarrumar o português”, como ouvira a um jornalista africano descontente com a nova lei. O capitão Windows ri-se do matraquear no teclado e corrige as más vontades. Só dedos muito atentos e hábeis conseguem despistá-lo. Mas até esses hão-de cansar-se, vão ver!

Feliz com o 13 de Maio, Anacleto sabia que a coisa não ia ficar por ali. Que havia já, no Brasil, quem anunciasse mais simplificações. Escrever como se fala, claro, como é que ninguém tinha pensado nisso. Ou tinha? Na verdade, soube ele depois de ir ao Google, houve em tempos um militar paladino da simplificação ortográfica, o general Bertoldo Klinger (1884-1969), que assinava “jeneral Klinjer” e que, muito antes de apoiar o golpe que instaurou a ditadura em 1964, escreveu uma ousada obra intitulada Ortografia Simplificada Brazileira. Aí, dando largas à ortografia que ele próprio inventara, escreveu: “Etimolojia e Uso têm seu relevante papel, sine qua non, na constituisão, no recrutamento do vocabulário; feito isso, termina, porêm, seu papel: entra em asão a Ortografia, para ficsar fielmente para os olhos o ce a boca emitiu, o ouvido persebeu. Portanto, a Ortografia alfabética só póde ser pronunsiativa, fonética. Seu instrumento é o Ortoalfabéto, de símbolos nesesários e bastantes, sônicos, simples, diretos e imvariáveis. Direto, cér dizer ce o nome do símbolo é ezatamente o do próprio fonema ce ele representa.” Anacleto entrara em êxtase. Era aquilo, e aquilo era a luz. Agora, havia um movimento que ressuscitara o espírito de “Klinjer” e, além de propor simplificar o mais possível a escrita, defendia alterações fantásticas (Anacleto leu tudo, ávido, na página do movimento Acordar Melhor). Homem passaria a “omem”; Passa a “pasa”; Excelência a “eselênsia”; Chuva a “xuva”; Asa a “aza”; Faça a “fasa”; Exame a “ezame”; e quero a “qero”. “Tudo o que se quer, consegue-se, quando se tem convicção”, leu ele no fim do manifesto da coisa. É assim mesmo: com militarões destes, ainda conquistamos o mundo!

(…)

[Transcrição parcial de artigo, da autoria de Nuno Pacheco, publicado na Revista 2 do jornal “Público” de 17.05.2015. “Links” nossos.]

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