125px-Flag_of_Sao_Tome_and_Principe.svgQuando D. Afonso II decidiu redigir o seu testamento em língua portuguesa, num acto propositado para marcar a diferença e realçar a independência do ainda jovem reino, não imaginou certamente o fenómeno viral que o seu acto comportaria e que oito séculos mais tarde Portugal já teria, por bem querer, abdicado da paternidade da sua própria língua. Esta impôs a diferença e cantou a independência, deixou de ser de uns e passou a ser de todos.

Certo que qualquer coisa que nasce tem berço, mas é certo também que a sua construção e propalação acabam por ficar perdidas em múltiplos berços e amas que a educam e a constroem. E também quando alguém cantou e espalhou por toda a parte e edificou a globalização de um património que hoje já não pertence ao seu berço.

Cerca de 800 anos depois do terceiro monarca luso ter rubricado o primeiro documento régio redigido em língua portuguesa, onde registava as suas últimas vontades num acto de afirmação da sua irreverência política e diferença identitária, ficava subliminarmente gravada uma das características democráticas da língua portuguesa que assenta no direito à múltipla diferença.

Ninguém pode decidir o que é ou de quem é esta língua que beneficia de tanta unanimidade, permanecendo tão heterogénea. Nenhuma língua foi criada por líderes ou déspotas da palavra, mas foi imposta por aqueles que a utilizam e aplicam. As diferenças entre esses «aqueles» legitimam as tonalidades, substantivos e adjectivos que a língua portuguesa foi adoptando. Assim, a língua portuguesa é hoje um mosaico fiel que respeita legitimamente os milhões de ditadores diários da palavra.

Diferenciar o português de Portugal, Brasil, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Timor, Macau ou Goa é esmagar a vertente democrática da língua portuguesa. Ao mesmo tempo, impor uma homogeneidade numa língua global é regredir no direito à diferença e esmagar a construção contínua e incessante desse património.

Com o testamento assinado a 27 de Junho de 1214, D. Afonso II quis lacrar a diferença e garantir a sua sucessão, como se dissesse no seu último leito: «Eu sou dono da minha palavra e da minha diferença». Os herdeiros desta vontade são todos os que usam essa mesma vontade, sendo estes os genuínos construtores da língua portuguesa independentemente de se encontrarem no coração do Amazonas, Alentejo, Cachéu, Angolares, Huambo, Cabo Delgado, Panjim, Fogo, Coloane, Baucau ou em qualquer comunidade que se exprima, cante e espalhe por toda a parte em língua portuguesa.

Impor uma uniformização da língua portuguesa, mesmo que seja apenas ortográfica, é castrar o direito à diferença desse património universal que não pertence a Estados nem a comissões ad hoc que a memória esquecerá. É algemar a construção futura da palavra e travar a adopção de diferenças evolutivas nascidas nos lusofalantes.

Apesar de monarca de um ainda jovem reino, a rubrica de D. Afonso II pode ser traduzida como um acto de rebelião face àqueles que ainda desejavam absorver o canteiro Atlântico. Uma rebelião que forjou a língua e que se juntou à vontade da diferença e afirmação de independência. Características que ainda hoje compõem a personalidade da língua portuguesa numa multiplicidade de rebeliões, diferenças e independências que no seu conjunto são a mesma família em torno da mesma palavra.

Rui Neumann

(c) PNN Portuguese News Network

[Transcrição integral de artigo, da autoria de Rui Neumann, publicado no “Jornal ST” (de S. Tomé e Príncipe) em 22.07.14. Reproduzido pelo jornal “Público” em 27.07.14, no âmbito da iniciativa «24 jornais escrevem sobre futuro do português» (ver “compilação” AQUI). Imagem (bandeira de S. Tomé e Príncipe) de Wikipedia.]

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