codecalE havemos de morrer com este desgosto? Esta língua matricial tão bonita há-de continuar a ser violada pelo inimigo? Tivessem estes bárbaros lido “Le Silence de la Mer”, de Vercors, saberiam que há legados que é preciso acarinhar. As palavras de uma língua são pequenas hastes de um ninho, estão interligadas, entretecem-se, criam laços, acalentam. Ter vivido num outro país e reconhecê-las num qualquer corredor, numa rua estranha, escrita em paredes, sussurrada em igreja com volutas de incenso ou gritada em novelos de fúria é voltar a casa. É já estar em casa. É a casa acolher-nos.

E havemos de nos sentir estrangeiros no nosso próprio solo? Que estigma, que praga, que tumor é este que se metastiza em tudo o que aparece escrito em todos os suportes? Eu, sinto-me cuspida, irreconhecida, desmerecida. Ver a Língua escorrer, assim arranhada e gasta, dorida e de cabeça rapada pelas ruas, só me lembra as francesas que “dormiram com o inimigo”… Que raio de país é este, narcoléptico e prostituído? Esta “nova língua” dói no pensamento. A alma, essa, já está de luto mal se abre um livro, aquele que era o lugar utópico para se morar quando tudo o mais falhava. As bibliotecas já não moram no meu peito, são agora catedrais decrépitas, escombros onde mora o erro, onde como heras cresce a falácia, onde muito do que aprendi e ensinava são agora máculas, desconchavos e mágoa. Leio o que está torto e torturo-me, como as bailarinas atormentadas das coreografias de Bausch. A “nova língua” faz-me pesadelos, é uma dentição onde, em vez das pérolas que descrevia Camões, vejo uma meretriz desdentada de Brueghel, o Velho. Um ultraje. Uma nódoa. Dizem bem os franceses: “C’est un comble!…”.

É o cúmulo. O meu povo é anedótico. O meu país já não existe, o que me torna apátrida. Isto é apenas uma parte do que sinto, desdobrada entre 99% de desespero (terei de ensinar erros aos meus alunos?…) e 1% de sebastianista crédula e crente (ainda haverá alguém que…?).

Agora, as palavras conseguem doer-me, anímica e fisicamente. Cura para as palavras doentes, precisa-se. Urgentemente. Porque se acorda e os olhos abrem-se para vidro moído que lhes é atirado. Como é óbvio, não se dão alvíssaras, mas pede-se o impossível: devolvam-nos o que nos tiraram!

Maria Pereira

[daqui]

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