Para
Editorial Caminho
Alfragide
Exmos. Srs.:
Quando vi o título do mais recente livro de José Saramago, temi o pior: “Claraboia”, assim mesmo, a rimar com poia.
Quando finalmente tive o livro nas mãos percebi que, de facto, a poia confirma-se: José Saramago, escritor que muito admiro mas acordista por resignação, na variante “não gosto mas eles são muitos”, “aderiu” de vez ao Acordo Ortográfico de 1990.
Mas, e isto é que é espantoso, terá conseguido fazê-lo em 1953, mais de meio século antes da sua imposição em Portugal. É o que podemos concluir da nota prévia nas primeiras páginas, que nos diz ter Saramago terminado o livro nesse ano — ao mesmo tempo que atesta a fidelidade desta edição face ao manuscrito original.
Como não é possível tamanha antecipação do desmando que acometeu a língua portuguesa, só podemos concluir que essa nota não é verdadeira e o texto original foi alterado.
Aparentemente, não se trata sequer de uma opção da editora. Tanto o texto de apresentação, na badana, como a ficha técnica do livro estão escritos em português correcto. A ficha técnica encontra-se, aliás, na mesmíssima página da referida nota, escrita em “acordês”.
Tudo indica, portanto, que se tratou de uma decisão dos herdeiros de Saramago, julgando certamente respeitar o que seria a vontade do escritor. Saramago, no entanto, era também um acordista respeitador, que ora escrevia “mãi”, ora mudava para “mãe”, conforme mudavam as regras. Ora, não é certo que as regras, actualmente, tenham mudado.
No plano internacional, o Acordo Ortográfico não foi ainda ratificado por Moçambique e por Angola. No Brasil, a Academia Brasileira de Letras está a ser processada por danos ao património cultural pela implantação do Acordo. Em Portugal, está em curso a recolha de assinaturas para uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos que prevê a revogação da entrada em vigor do AO90. Parafraseando Mark Twain, as notícias sobre a morte da norma ortográfica de 1945 terão sido algo exageradas.
Apesar de tudo, é a editora que vende o livro e, como tal, é à editora que devo dizer que estou perante o primeiro livro de Saramago que não irei comprar. Prefiro esperar pela verdadeira versão original, a sair certamente numa próxima edição.
Atenciosamente,
Rui Valente
Nota: transcrição integral do e-mail enviado nesta data à Editorial Caminho.